Pelos Olhos de Maisie
Data: 03/05/2014
Local: Associação Paulista de Medicina Secção Regional Marília – APM
Realização: Núcleo de Psicanálise de Marília e Região e Assoc. Paulista de Medicina Marília – APM
Comentadora: Cibele Maria Moraes Di Batista Brandão – Membro Efetivo e Analista Didata da SBPSP.
Esse texto contém breves reflexões que visam estimular a discussão entre os participantes dessa atividade há anos desenvolvida pelo Núcleo de Psicanálise de Marília e Região.
No início do filme a mãe canta para a filha dormir. É uma canção suave, mas a letra é aterrorizadora “Quando o vento soprar, o berço vai derrubar”. Apesar dessa ligação Maisie é uma garota de sete anos que conserva sua vontade de viver, de jogar bola, de ir à escola e comer pizza. Os pais brigam o tempo todo e estão mais preocupados com isso do que com Maisie. Ela já não percebe mais tanto a tensão – procura fazer uma adaptação. Quando o rapaz que entrega a pizza vem a sua casa, ela já é suficientemente capaz de pagá-la sem pedir nada aos adultos e não esquece nem da gorjeta. Mas uma noite quando sua amiga Zoey vai dormir em sua casa, a amiga não suporta o que vê e a falta de acolhimento para com as crianças a assusta. Ela pede para ir embora. Lá estão adultos, amigos da mãe fumando, bebendo, ouvindo música e as crianças nem são vistas. Tudo era mais importante do que Maisie. A amiga quis ir embora e voltar para junto de seus pais onde sentia-se mais segura e talvez pudesse ser criança e mostrar medo de estar só. Porém Maisie segue sendo sempre muito boa, cordata. Os adultos brigam pelo poder e não pelo bem estar da criança.
No drama Pelos Olhos de Maisie, Susana e Beale estão se separando e a filha é disputada não exatamente por uma questão de afeto, mas parece ser uma briga para saber quem dos dois é o mais poderoso, uma vez que estamos falando de adultos perdidos e inseguros. No final do filme, em uma das cenas decisivas pela primeira vez Maisie diz não para sua mãe. Foi quando quis ficar na praia com Linconl e Margo e esse não foi sua salvação.
Maisie é a personagem da atriz mirim Onata Aprile que tem um desempenho notável, faz o papel da criança compreensiva e cordata. O filme é inspirado no livro de *Henry James (1843 – 1916) What Maisie knew (“O que Maisie sabia”) – Romance escrito em 1897 que pode ser atualizado com as questões familiares que invadem a Nova York, São Paulo, Paris de hoje permanecendo muito atual. O foco importante do filme é mostrar a trama toda pelo ponto de vista da criança – como ela via as crises que existiam a seu redor. A abordagem é áspera e realista – retrata a amargura da vida adulta pelo olhar aparentemente simples da criança. Ela só via e ouvia e seguia vivendo a vida obedientemente.
O principal interesse deste filme: enxergar as crises nos relacionamentos dos adultos pelo ponto de vista de uma criança.
Como tudo depende do olhar da garota, o espectador não saberá o que ela mesma não é capaz de compreender. A pequena Maisie está frequentemente espiando brigas no fim do corredor, ouvindo conversas no cômodo ao lado. O fato é que a criança vê tudo nesta casa (ela enxerga o namorado da mãe de cueca, presencia o pai flertando com a babá), mas ninguém a vê.
A maioria das cenas consiste em mostrar o pai, a mãe, o padrasto e a madrasta em discussões calorosas sobre quem vai pegar a garota na escola, quem vai cuidar da menina nos fins de semana. Maisie entra e sai de táxis, entra e sai de prédios diferentes. A garota fica perplexa: afinal, os quatro parecem gostar muito dela, mas não uns dos outros. Acima de tudo, eles estão ocupados demais com as suas vidas profissionais, deixando a responsabilidade da paternidade e maternidade em segundo plano.
Tamanha falta de afeto poderia causar alguma consequência nas crianças, mas Pelos Olhos de Maisie traz uma protagonista passiva. A garota observa a crise ao redor, mas não chora, não grita, não se impõe, não diz o que quer. Se ela está triste ou traumatizada, isso não é projetado em seu comportamento com os amigos ou vizinhos.
Depois de tantas discussões, que não evoluem ao longo de toda a narrativa, a solução apresentada nas cenas finais pode parecer corajosa ou inverossímil, dependendo do ponto de vista, mas pelo menos consegue interromper o ritmo linear da história.
Retratando a protagonista sozinha em uma imagem, sem depender da presença dos adultos. Esta decisão de passar o bastão à própria Maisie, como uma confiança no amadurecimento da garota, é uma boa surpresa para uma produção que se conduziu, até os momentos finais, de modo tão belo quanto frio.
Os pais de Maisie se separam e disputam judicialmente a guarda da garota, mas o fato é que ambos estão longe de serem bons pais. Não que eles a maltratem. O que vemos são repetidos exemplos de descaso. Apesar de tentarem demonstrar aos outros o contrário, fica evidente que Maisie não é a prioridade.
Susanna é uma cantora de rock, estereótipo de alguém com vida desregrada, adepta de drogas e incapaz de dominar as emoções. Beale é um executivo, padrão de profissional hiperatarefado e sem tempo para dedicar afetos a quem quer que seja.
Em paralelo, Maisie encontra refúgio na companhia de Margo, a babá que se torna a nova mulher de seu pai, e de Lincoln, garotão com o qual sua mãe se casa.
Nesses dois pares, o filme explora questões como o excesso de individualismo, a prioridade dada ao trabalho em detrimento das relações e a orfandade de uma criança que cresce cercada de recursos educacionais e de lazer, mas desconectada de vínculos afetivos.
Enquanto os pais não cumprem seu esperado papel, as figuras substitutas demonstram o esvaziamento do conceito tradicional de “família”.
É notável como, tendo sido publicado em 1897, a película permanece atual. Escrito por Henry James numa época em que os divórcios ainda não haviam se tornado tão corriqueiros.
Mantendo a base da história concebida por James, as roteiristas (Nancy Doyne e Carroll Cartwright) transportam a família para a Nova York dos dias atuais sem grandes problemas, transformando a mãe de Maisie em uma pequena estrela de rock que, vivida por Julianne Moore, encontra-se no fim do casamento com o marchand Beale (Coogan). Separados, os dois logo se esforçam para envenenar a mente da criança com relação ao ex-parceiro. Não deixam de dizer e sobrecarregar a menina o quanto seus impulsos lhes pedirem.
Surgindo autossuficiente já desde os primeiros minutos de projeção, quando se encarrega de pagar pela pizza que é entregue em seu apartamento enquanto os pais brigam ao fundo, Maisie é encarnada pela pequena Onata Aprile como uma criança comum que se refugia em seu pequeno mundo para evitar o peso dos conflitos domésticos que a cercam e que, claro, encontram sempre um modo de atingi-la. Assim, quando os diretores (Scott McGehee e David Siegel) acompanham o trajeto da menina até a escola, já no primeiro ato, se encarregam de sugerir sua tristeza através de planos-detalhe que trazem um balanço vazio e uma pipa presa em um fio elétrico, evocando símbolos melancólicos de uma infância sabotada por uma guerra conjugal. Por outro lado, os cineastas (especialistas em dramas familiares) demonstram conhecer a resiliência do espírito infantil através de cenas que trazem a crianças sorrindo e brincando com os colegas na escola – e não é surpresa perceber como ela parece relaxar sempre que distante dos pais.
Beale e Susanna aos poucos vão se estabelecendo como pequenos monstros, manipulando a menina, obrigando-a a guardar segredos e jamais hesitando em se entregar a discussões calorosas na frente da garota. Demonstrando um descaso colossal para com os sentimentos de qualquer um que não eles mesmos, os dois chegam a se casar com duas novas vítimas mais por estratégia do que por realmente algum interesse romântico pelos jovens parceiros – e não demora muito até que estejamos torcendo para que Maisie seja sequestrada e levada para longe deles.
Neste aspecto, aliás, as atuações de Lincoln (Skarsgård) e Margo (Vanderham) são importantes por estabelecerem um contraponto de gentileza à amargura de seus pares: enquanto Margo demonstra carinho e preocupação com o bem-estar de Maisie, Lincoln é composto por um homem relativamente imaturo que, adotando uma postura encurvada que denota sua insegurança diante do mundo, mostra-se capaz de identificar-se com a inocência da menina e de compreender o que esta enfrenta.
Buscando construir a narrativa a partir do ponto de vista de Maisie, o longa é eficiente ao sugerir os sentimentos e percepções da criança através do design de produção – e, assim, quando ela conhece seu quarto no apartamento do pai, percebemos que, mesmo confortável e cheio de brinquedos, há uma frieza no ambiente dominado por brancos e que substitui a bela vista da casa anterior por uma varanda bloqueada por prédios marrons e metais escuros. Da mesma maneira, o filme sugere a alegria inerente da garota através de sua predileção por um tom intenso de amarelo que surge presente em suas roupas e objetos favoritos – e quando Lincoln a presenteia com um livro, sua proximidade sentimental e sua compreensão acerca das preferências da menina são evidenciadas justamente ao percebermos a presença daquela cor no objeto (e o mesmo vale quando notamos como Margo usa uma saia amarela ao passear com Maisie). Tampouco é acaso que Susanna surja constantemente dominada por figurinos vermelhos e/ou pretos, distanciando-se da filha mesmo quando tenta se aproximar.
Angustiante ao retratar uma criança que, em vez de protegida pela segurança dos pais, é obrigada a testemunhar os dois principais adultos de sua vida entregando-se a conflitos, lágrimas e gritos constantes, Pelos Olhos de Maisie demonstra entender uma dinâmica familiar infelizmente bastante comum ao trazer Susanna e Beale repetindo declarações de amor à filha, como se um “Você sabe que eu te amo, não sabe? ” Fosse capaz de magicamente substituir a atenção, o carinho e o apoio que a menina tanto precisa. Assim, quando em certo instante vemos o ônibus que traz a mãe da garota se aproximando, o veículo parece surgir do meio da escuridão como o pesadelo sentimental que traz a bordo.
Talvez o desfecho tenta adiar o sofrimento que certamente virá, Pelos Olhos de Maisie é ao menos honesto e sensível ao reconhecer que, mesmo péssimos como são, Susanna e Beale são vistos com carinho e apego comoventes pela criança que tanto negligenciam e para a qual serão sempre “papai” e “mamãe”.
Então o que Maisie sabia? Sabia que não poderia contar com os pais, mas ela era favorecida por uma característica que é a capacidade de perdoar, poder amar e seguir procurando o que para ela tinha importância.
*Henry James:
Escritor, dramaturgo, ensaísta e crítico, Henry James figura entre os mais influentes autores da virada do século XIX. Nascido em Nova York em 1843, com ascendência irlandesa e escocesa, foi o segundo dos cinco filhos de Sir Henry James, um proeminente teólogo e filósofo. De acordo com a vontade do pai, Henry James e seus irmãos receberam uma educação cosmopolita. Começou seus estudos em casa com um tutor. Em 1862 ingressou na escola de Direito de Harvard, que abandonou após um ano. Encorajado pelo seu amigo e companheiro de escrita William Dean Howells, começou a produzir artigos e críticas para vários jornais.
Em 1869, sentindo-se repelido por uma América hostil ao seu talento criativo e atraído por uma Europa que respirava cultura, abandonou os Estados Unidos para embarcar na primeira longa viagem ao exterior. Passando por Londres, Paris e Roma, James se sentiu como um espectador da própria vida, e seus primeiros trabalhos publicados relatam essa experiência: Roderick Hudson (1875), sua primeira novela, aborda o fracasso de um escultor americano em Roma. The American (1877) e The Europeans (1878), por sua vez, como os títulos sugerem, enfocam as diferenças entre os dois continentes. Atraído pelo clima intelectual e social de Paris, James passou um ano na cidade, onde teve a oportunidade de conhecer Flaubert e Turguêniev. Em 1876 se estabeleceu em Londres, fazendo da cidade sua casa pelos próximos vinte anos.
Já na Inglaterra, James escreveu algumas das suas melhores obras, incluindo Daisy Miller (1879) que, publicada inicialmente em 1878 na The Cornhill Magazine, transformou-o no sucesso do momento em Londres. Foi o primeiro trabalho com o qual obteve grande popularidade, e o primeiro de seus grandes retratos da mulher americana. Nesse período escreveu também Retrato de uma senhora (The Portrait of a Lady, 1882), The Bostonians (1886) e The Princess Casamassima (1886), consagrando-se no gênero novela como precursor da moderna ficção pela utilização do flashback e pela narração indireta.
Após essa primeira fase marcadamente realista, Henry James se aprofundou na literatura de caráter psicológico. Além de se destacar como autor de narrativas longas e curtas (escreveu cerca de cem contos), James também se dedicou à dramaturgia, experiência negativa pela qual chegou a ser vaiado na estréia da sua peça Guy Domville, em 1895. Após esse episódio, decidiu retornar à ficção, produzindo Pelos olhos de Maisie (What Maisie Knew, 1897), The Awkward Age (1899), As asas da pomba (The Wings of The Dove, 1902) e A taça de ouro (The Golden Bowl, 1904). A volta do parafuso (The Turn of the Screw, 1898), dessa mesma época, uma sinistra história de terror psicológico, se tornou um clássico da literatura e grande exemplar do extraordinário domínio do autor da língua inglesa.
Henry James permaneceu em Londres até o final dos anos 1890, quando se mudou para Rye, uma pequena cidade no topo de uma colina, em Sussex. Popular entre os intelectuais de Londres, o autor também era muito estimado por jovens escritores. Sua admiração pela Inglaterra e por tudo que fosse inglês contribuíram para que ele se naturalizasse cidadão britânico em 1915, após o início da Primeira Guerra Mundial, sendo posteriormente condecorado com a Ordem do Mérito. Henry James morreu em 1916, em decorrência de um derrame.
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