WILLIAM SHAKESPEARE – A INVENÇÃO DO HUMANO –

1º COLÓQUIO PSICANÁLISE E ARTE
No dia 19 de setembro de 2015, a Comissão Cultural do NPMR promoveu o I Colóquio – Dialogando com William Shakespeare: Por que falar de Hamlet? Com a presença da psicanalista Cibele M. M. de Battista Brandão, rendendo muitas elucidações e contribuindo com o desenvolvimento de pensamentos ligados a psicanálise!

 

– William Shakespeare –  A invenção do humano –

O mais renomado e ilustre poeta inglês da história fora chamado, em seu tempo, “O Bardo” – pessoa que compunha e recitava – numa referência aos antigos poetas cantores e contadores de história da Europa, os quais viajavam levando suas histórias colhidas dos mais diversos lugares.

William Shakespeare nasceu na pequena cidade de Stratford-Upon-Avon supostamente em 23 de abril de 1564, filho de John Shakespeare e Mary Arden. Sua infância e juventude não nos trazem muitos dados. Casou-se aos 18 anos com Anne Hathaway e tiveram três filhos: Susana e os gêmeos Hamnet e Judith. A partir dos 28 anos é que começam a surgir informações de sua vida e seus primeiros trabalhos como dramaturgo. Mas há muitos mistérios e poucos dados que descrevem a trajetória de sua vida.

No próximo ano – 2016 – estaremos celebrando 400 anos de sua morte, que ocorreu em 23 de abril de 1616, aos 52 anos.

Sua fama como dramaturgo, escritor, poeta e ator, lhe rendeu muitas homenagens em vida e na posteridade. Foi enterrado na Igreja da Santíssima Trindade – diz a lenda que sobre seu peito jaz sua última e desconhecida 38? peça. Há uma maldição folclórica que impede ou afasta uma possível violação de sua tumba. Shakespeare escreveu, ao todo, 37 peças, 154 sonetos e uma variedade de outros poemas. Suas peças destacam-se pela grandeza poética da linguagem, pela profundidade filosófica e pela complexa caracterização das personagens. O destaque não é tanto pelo enredo.

É considerado unanimemente um dos maiores autores de todos os tempos. Sua obra dramática funde uma visão poética e refinada a um forte caráter popular, no qual os assassinos, as violações, os incestos e as traições são os ingredientes mais leves para o divertimento do público.

A mais famosa passagem da peça de Hamlet (Shakespeare, 2006), sua peça mais encenada, é sobre o dilema da própria existência humana que poderia ser traduzido também por: Existir ou não existir.

“Ser ou não ser – eis a questão.

Será mais nobre sofrer na alma

Pedras e flechadas do destino feroz

Ou pegar em armas contra o mar de angústias –

E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; Dormir;

Só isso. E com o sono – dizem – extinguir

Dores do coração e as mil mazelas naturais

A que a carne é sujeita; eis uma consumação

Ardentemente desejável. Morrer – dormir –

Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!

Os sonhos que hão de vir no sono da morte

Quando estivermos escapado o tumulto vital

Nos obrigam a hesitar: e é essa a reflexão

Que dá à desventura uma vida tão longa.

Pois quem suportaria os açoites e insultos do mundo,

A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,

As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,

A prepotência do mando, e o achincalhe

Que o mérito impaciente recebe dos inúteis,

Podendo, ele próprio, encontrar o seu repouso

Com um simples punhal? Quem aguentaria fardos,

Gemendo e suando numa vida servil,

Senão porque o terror de alguma coisa após a morte –

O país não descoberto, de cujos confins

Jamais voltou nenhum viajante – nos confunde a vontade,

Nos faz preferir e suportar os males que já temos,

A fugirmos para outros que desconhecemos?

E assim a reflexão faz todos nós covardes.

E assim o matiz natural da decisão

Se transforma no doentio pálido do pensamento.

E empreitadas de vigor e coragem,

Refletidas de mais, saem de seu caminho,

Perdem o nome de ação. (Vê Ofélia rezando).

Mas, devagar agora!

A bela Ofélia! Ninfa, em tuas orações sejam lembrados todos os meus pecados

Outro mistério que cerca a vida do ilustre Bardo, diz respeito a acusações de que algumas das peças que ele escreveu, na realidade, não foram de sua autoria, mas sim feitas por outros autores, como o Lord de Oxford da época, e o renomado político, advogado e filósofo natural, Francis Bacon (1561-1626). E que Shakespeare não teria, na verdade, existido, sendo o pseudônimo de outros.

Uma das teorias mais persistentes é a de que Francis Bacon seria o “verdadeiro” Shakespeare. Boatos e especulações a parte nenhuma dessas teorias foram comprovadas, e Shakespeare ainda mantém sua integridade como célebre autor.

Hamlet

O que era o homem antes de Shakespeare? Como era retratado?

O homem antes de Shakespeare seria um personagem de dimensão quase inexistente, afirma o crítico literário Harold Bloom (nasceu na cidade de New York. Graduou-se em Cornell (1951), Ph.D em Yale. Além de maravilhoso escritor, acumulou a função de mestre, pois lecionou na Universidade de Harvard, hoje leciona em Yale. Passou boa parte da sua vida lendo, relendo, entendendo e resenhando os grandes autores como: Proust, Kafka, Werther, Faulkner, Shakespeare, Dante, Cervantes, Milton, José Saramago, Fernando Pessoa, Eça de Queirós, Machado de Assis, etc.) que dedicou duas décadas quase que integralmente ao dramaturgo inglês. Bloom (2000) escreveu o livro Shakespeare – A invenção do humano, no qual analisa uma a uma as peças de Shakespeare, revelando a incontentável riqueza de seu mundo criativo. Por meio de sua obra, ele aponta que Shakespeare não apenas representou, mas efetivamente inventou o homem. A capacidade de evolução por uma relação consigo mesmo, a habilidade em mergulhar na difícil e desafiadora viagem do autoconhecimento pela reflexão tem início na obra dele. É justamente por isso que Bloom o identifica como o inventor do humano. A genialidade de Shakespeare vem desafiando estudiosos ao longo dos anos. Um talento inigualável que o levou a criar Rei Lear, Macbeth, Cleópatra, em pouco mais de um ano. Ele foi capaz de mostrar com profundidade o homem buscando a si mesmo por intermédio da reflexão.

Uma capacidade inquietante de atravessar os obscuros labirintos da mente humana, desnudando paixões, iluminando desejos, apontando grandes fantasmas que perseguem o homem desde sempre.

Shakespeare escreveu a peça Hamlet – O Príncipe da Dinamarca, obra fictícia que conta que Hamlet volta de seus estudos e vê Cláudio (tio paterno) e Gertrudes (sua mãe) vivendo uma trama que teria como objetivo Hamlet assassinar seu pai e usurpar seu lugar no trono. Fala sobre o desequilíbrio que detona um período catártico de transformação. Como em toda obra de Shakespeare, nesta peça são tratadas questões de poder – legitimidade –, vingança, etc. Trata-se de uma obra clássica que tem como definição o fato de cada vez que você lê, sempre traz um novo olhar. Há em torno de doze filmes sobre Hamlet. Nesse é tratado, também, um tema que mantém sempre sua atualidade, ou seja, o tema da sociedade corrupta e seus desdobramentos.

Outro tema também recorrente é o momento em que o leitor entra em contato com a tentativa de ressignificar a perda de um pai e o impacto pelo fato de aceitar que o ente amado partiu e que nunca mais você o verá.

Na forma dada a essa peça, o vulgar e o sublime estão unidos. Vale lembrar que, ao descrever as paixões humanas – o amor, o ciúme, o poder, a velhice – Shakespeare foi o responsável por introduzir no idioma inglês mais de 2.000 novas palavras. Muitas falas que aparecem em Hamlet ficaram famosas:

“Fragilidade seu nome é mulher”.

“O resto é silêncio”.

“Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia”.

“Há algo de podre no reino da Dinamarca”

Em Rei Lear: “Pobre Lear ficou velho antes de ficar sábio”.

Em Macbeth quando em uma fala do personagem Malcom, que precede a importância da catarse – “daí palavras a dor”. Quando a tristeza perde a fala, sibila ao coração, provocando de pronto uma explosão.

 “Ser ou não ser, eis a questão”.

Existir ou não existir? Qual é o sentido dessa indagação? Domínio de si? A solidão estrutural da consciência moderna. A angústia faz refletir se a vida vale a pena ser vivida. É Shakespeare quem inaugura e introduz em seus personagens a capacidade de reflexão. Antes dele, os personagens mostravam uma vida linearmente vivida: nascer – crescer – envelhecer e morrer.

Em Hamlet aparece um personagem que questiona a validade de sua própria existência e sua decisão em continuar vivo: Ser ou não ser. Qual é o sentido da vida?

O príncipe da Dinamarca inaugura a capacidade autorreflexiva – O que faço com minha vida? E “o resto é silêncio” – Hamlet nos convida a olhar para uma caveira – quem serei de verdade? Coloca o homem diante do medo e do desejo da morte. A caveira representa o futuro e o destino de todo ser humano.

O que fazer diante da consciência? Ele se mostra pronto para olhar para realidade com objetividade, diferentemente de Édipo que se cegou para não ver o que havia feito com sua própria vida. Hamlet é visto como o primeiro homem livre, senhor de seu destino, com consciência de se tornar quem ele sentia que realmente era. Ele é agente de sua história. O eu é soberano. Tentamos definir o que é a obra de arte. A maior delas é o ser humano e sua capacidade reflexiva e criativa. Nesse diálogo Hamlet mostra também o poder de decidir não se matar. Sou senhor do meu destino. Hamlet não fez questão de aparentar ser feliz. Não esconde sua melancolia. Ele tem uma consciência brutal de tudo. E diz que a consciência nos torna covardes. Quanto mais sabemos, mais tememos.

Por que Shakespeare? Pela diversidade das suas “pessoas”. Ele tanto nos fez mudar! Ele nos ajudou a compreender a natureza humana. Ele criou maneiras diversas de representar a mudança no ser humano, alterações essas provocadas não apenas pelas falhas de caráter ou por corrupção, mas também pela vontade própria, pela vulnerabilidade temporal da vontade.

O mal de Elsinore (o reino do príncipe Hamlet) é o mal de todo tempo e lugar. Todo estado tem algo de podre, e os que têm sensibilidade semelhante a Hamlet, cedo ou tarde, vão se rebelar. A tragédia de Hamlet, em última análise, é a tragédia da personalidade – o único inimigo loquaz de Hamlet é o próprio Hamlet. Sendo tudo, Hamlet sabe, que também não é nada. Vida e morte andam juntas.

Para trazer uma luz de reflexão a todos esses dilemas o homem cria explicações por meio da arte.

Interessa-nos bem de perto os clássicos da literatura e a questão de como eles podem nos ajudar a compreender nosso cotidiano, às vezes obscuro. Leandro Karnal (2015), historiador, autor de vários títulos, estuda Shakespeare e, particularmente Hamlet, que criou inúmeros personagens, e os colocam no nosso mundo, num palco.

Foi moda no século XIX falar que Shakespeare não existiu, sendo apenas o codinome de outros autores. Será que nunca existiu? Ele não fez universidade, nunca saiu da Inglaterra, mas era tão original! Ele não estava inserido no mundo acadêmico, assim como muitos dos grandes intelectuais não passaram pela universalidade.

Ele escreveu 37 peças, 154 sonetos e 2 poemas épicos. Hamlet é a peça mais encenada e é o mais importante modelo de vingança. Seus personagens falam da liberdade, do alto e do baixo, do vulgar e sublime. Um rei foi morto e seu irmão assume o trono casando-se com sua viúva – período catártico de transformação. Trata-se de um desequilíbrio (Hibris) que detona uma destruição sangrenta. Um rei foi morto, seu irmão toma o poder e torna-se o outro rei. Esposa sua mulher. Desperta uma comoção em seu sobrinho – o príncipe filho de seu irmão morto Hamlet. É uma peça sobre poder, legitimidade, corrupção e vingança. Peça clássica, muito lida, um dos livros mais lidos na história da literatura mundial. Os personagens principais Claudio (seu tio) Gertrudes (sua mãe) de um lado. De outro Laertes (filho), Polonio (pai) e Ofélia (filha namorada de Hamlet). Os amigos, o verdadeiro – Horácio – (Hamlet morre em seus braços) os outros (impostores, alcaguetes) Rosencrantz e Guildenstern.

Polônio, cortesão, representa o homem sem brilho, sem autenticidade. É o homem da etiqueta, da aparência, subjugado. Surpreendentemente dá ao filho os mais sábios conselhos sobre felicidade, ao despedir-se do mesmo (Laertes) que iria estudar em Paris: –

– Pensa antes de falar e pensa antes de agir.

– Sê amistoso, mas nunca vulgar.

– Os amigos que tenhas e já testados prende-os na tua alma com grampos de aço mas não dê sua amizade a qualquer um.

– Procura não entrar em nenhuma briga mas se uma vez entrar faça com que seu inimigo o tema.

– Presta ouvido a muitos, sua voz a poucos.

– Acolhe a opinião de todos – mas você decide.

– Usa roupas tão caras quanto sua bolsa permitir, mas nada de extravagancias ricas as roupas, mas não pomposas. O hábito revela o homem.

Na França as pessoas de mais alto conceito e posição são, a esse respeito, modelo de finura e distinção.

– Não peças nem dê emprestado a ninguém pois emprestar faz perder ao mesmo tempo o dinheiro e o amigo e, pedir emprestado, embota o fio da economia.

– E isto acima de tudo: – sê fiel consigo mesmo e disto se seguirá, como a noite segue o dia, que não poderás ser falso com quem quer que seja.

Peça escrita supostamente em 1600, gerou vários filmes e peças teatrais. É um clássico que ressignifica, por exemplo, a dor pela perda de um pai – a orfandade de Hamlet tem um significado especial, pois gerou um sentimento de vingança. Perder, por assassinato e cobiça pelo trono, alguém que ele amou tanto, que partiu e nunca mais o filho o encontraria. Um bom livro, uma boa peça, traz essas questões de um modo tão vivo que se torna uma companhia para a vida inteira. Sempre traz algo de novo. Alguém que não lê é solitário. Os livros nos fazem viajar. Unem o vulgar e o sublime, o amor e o ódio. O fraco e o forte. Mostra-nos os preconceitos, os ódios infundados. A cobiça sem fim. E os personagens de Shakespeare dão significado enorme a isso tudo. Em Hamlet, ele dá vida a esse personagem e faz aparecer o primeiro grande homem moderno. É o homem que toma decisões, que tem a crença no poder do eu – sendo o eu visto como elemento fundante da percepção do mundo pelo homem, pelo seu poder decisório. Esse tu aparece retratado em Hamlet como agente de sua estória. No monólogo “Ser ou não ser”, ele evidencia a decisão de não se matar, mostrando-se sumo senhor de seu destino. Ele é um personagem que proclama o fim da redenção pelo amor. Ele não é um romântico, mas é um homem moderno. Ele não se importa em mostrar sua melancolia e infelicidade. Se veste de preto e diz que é a cor que reflete melhor o seu estado interior. Ele não faz questão de esconder que é melancólico, triste. É um personagem que não tem necessidade de se mostrar feliz. Ele se pergunta quem sou de verdade e não o que devo ser. O que existe dentro de mim que não seja encenação ou etiqueta. Que medo de que, fora isso, exista só o vazio! As dores que inventamos são o disfarce de uma dor maior. Nasce de o fato das pessoas mostrarem mais o que não são. Mostram pouco o que são. Há um medo do vazio!

Usamos muitas palavras… O resto é silêncio!

Hamlet recusou-se a ser o príncipe que se submetia apenas ao que o protocolo e a etiqueta pediam.

Ele quis conhecer a verdade. Mesmo que essa lhe trouxesse a tristeza e a melancolia por ver, ao buscá-la, a corrupção, a deslealdade e a mentira. Ele fingiu-se de louco como forma de rebeldia e defesa, mas não se subjugou. Não queria nada que não fosse legítimo e leal. Não pode fechar os olhos e fazer de conta que nada estava acontecendo. Ele viu a ganância de seu tio paterno querer o trono que pertenceu a seu pai. Viu sua mãe deixar-se levar pela mentira. Pagou caro. Teve apenas um verdadeiro amigo Horácio, nos braços de quem ele morreu.

O mal de Elsinore é o mal de todo o tempo e lugar. Seu príncipe via que havia algo de podre no reino da Dinamarca.

Tinha consciência. O que fazer com a consciência, com aquilo que é visto e percebido? Ele não tinha com quem contar. Nem seu tio Claudio, nem sua mãe Gertrudes, nem o cortesão Polônio.

Estava só, como de certa forma está todo ser humano. Essa peça representa o perigo de se ter consciência. Como ele pagou caro por não querer ser só o que dele era esperado.

 

 

Referências

Bloom, Harold. Shakespeare – a invenção do humano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

Karnal, Leandro. Trecho do Café Filosófico ¨Hamlet de Shakespeare e o mundo como palco¨. YouTube, abr. 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BdJ8CnyTHM4. Acesso em:  24/04/2015.

Shakespeare, Willian. Hamlet. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2006.

2 thoughts on “WILLIAM SHAKESPEARE – A INVENÇÃO DO HUMANO –

  • 27 de dezembro de 2020 at 3:51
    Permalink

    Artigo interessante, irei até retornar ao seu site com mais
    frequência, para mais artigos como estes. Obrigada

  • 6 de março de 2021 at 8:16
    Permalink

    Maria Silva, obrigada. Retorno sim com mais frequência.

    Cibele Brandão

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