A Clínica Psicanalítica em Tempos de Pandemia
Prazer em estarmos juntos!
Quando assumimos a Diretoria do Núcleo Biênio 2019-2020, fiquei com a função de coordenar a Comissão Científica. Realizamos uma programação e pudemos fazê-la com o enquadre planejado e mantido. Nesse ano de 2020, não seria diferente no mês de fevereiro, estávamos com a programação praticamente pronta para o ano inteiro. Tudo certo. Nos entusiasmamos também com um novo projeto direcionados aos jovens terapeutas para os quais levaríamos os Princípios Básicos da Clínica Psicanalítica. Também tudo certo. Mas, chega o mês e março e começam a vir notícias mais insistentes de um vírus – covid-19. Um caso ou outro aqui, mas China, Itália, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos começam nos mostrar o que nenhuma imaginação com base na realidade veria, só mesmo a ficção poderia imaginar.
A humanidade inteira ameaçada por um inimigo invisível e feroz. A partir de 15 de março nossas vidas começaram mudar completamente e como se estivéssemos no escuro, sem muitas orientações, pois ninguém sabia quase nada dessa nova fonte de sofrimento, fomos interrogando como viver agora no espaço da incerteza e insegurança.
De repente, fomos concluindo que o que sempre apregoamos como o mais eficaz remédio para ansiedade, dores e medo – O contato humano -passou ser daqui para frente o maior mal. A palavra isolamento social começou a ser a ordem do dia e começamos entender que para não morrer ou contagiar outras pessoas teríamos que nos retirar de cena. Você já tinha tido um pesadelo semelhante a esse? O impacto do real nas subjetividades.
Algumas profissões tiveram que fechar suas portas e viver com a apavorante ideia – como sobreviver? Como pagar os encargos de nossas dispendiosas estruturas? Para nós, uma esperança começa a brotar. Nos atendimentos online propostos, o trabalho analítico se mantia. Não só se mantia, havia algo novo momentos muito regressivos, trazem o desejo de investigar áreas nunca antes visitadas. Vamos também buscar a saída dentro de nós mesmos e recuamos para dentro e com isso vem mais material. Se estamos envolvidos num processo pré-trauma criativo, usamos a transferência para nos apoiarmos e entendermos mais sobre o novo. Tocados todos pela ameaça, as sessões se mantiveram. Os pacientes que usam o divã, os colegas em comum observam, que passaram a serem atendidos no áudio, supervisões vídeo, um ou outro paciente por vídeo, geralmente os que costumam trabalhar face a face e alguns nos disseram – vou esperar você voltar e atender presencial, para mim precisa ser assim. E assim começamos pensar, entender angustias primitivas impensadas antes e passamos viver o que descreve Janine Puget no artigo sobre o Fenômeno dos Mundos Superpostos que e um estado mental no qual fica o analista quando o material manifesto do paciente menciona dados ou situações da vida cotidiana comum a ambos.
É a sobreposição de mundos iguais. Precisamos mesmo nos reunir para pensar, compreender como manter o enquadre analítico, a escuta pelo latente e o aparecimento de novas saídas -Não podemos mais ficar na ilusão de manter o mesmo que traz a impossibilidade de viver o novo.
Começa uma nova fase. Começamos falar coisas coincidentes com os colegas. Por exemplo, foi um lugar comum dizermos que nas primeiras semanas ficamos exaustos. Era muita coisa nova para ser elaborada. Nos primeiros dias me incomodou uma dor nas mãos que eu não identificava. De repente eu percebi que eu estava segurando o celular durante o dia todo com uma força que não seria possível não doer depois. Não me acertava com nenhum suporte para o aparelho e então me dei conta que eu agarrava com força um objeto transicional. Simbolicamente ele passou ser minha ligação com todas as pessoas com as quais há muitos anos invisto em uma ligação preciosa que seria impensável viver sem isso. Os consultórios concretamente ficaram praticamente vazios e então fomos percebendo que é verdade mesmo o que muitas vezes lemos em vários artigos – o que constrói um consultório analítico é a mente do analista. Começamos ver também que assim como nós procuramos aprender tantas coisas novas, procuramos atender com dedicação, fazer acertos arranjos, os pacientes também – começaram investir na sua paciência para suportar as conexões que caem, a ausência do setting tradicional, a perda da privacidade, a mistura maior com os familiares que passaram opinar sobre a continuidade ou não do processo e vimos também que felizmente a Psicanalise existe. E que se mostrou resiliente fazendo os processos prosseguirem mantendo as Instituições abertas e funcionantes oferecendo com isso um continente para o caos não se instalar e mantendo a função sonhante. Nós aqui no Núcleo temos tido reuniões para falar sobre a construção da nova sede. Temos reuniões para falar da possível passagem para Grupo de Estudo da IPA. Nesses momentos fazemos uma cisão própria dos Quixotes que andam por ai sonhando nosso sonho impossível. Termino com uma citação de Thomas Ogden em seu artigo – Do que eu não Abriria mão – O psicanalista deve ser capaz de reconhecer com tristeza e compaixão que entre as piores e mais debilitantes perdas humanas é a perda da capacidade de estar vivo para nossa própria experiencia. Estar vivo para viver a própria experiencia é, em minha concepção, diz ele sinônimo de ser capaz de sonhar nossa experiência emocional vivida.