SBPSP – 70 anos de história
No filme “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004), o diretor Michel Gondry retoma o tema do tempo e da memória, tão caro a nós psicanalistas desde Freud. Por meio dos personagens Joel e Clementine, somos apresentados à possibilidade de eliminar da memória eventos ou mesmo pessoas que nos trazem dor e sofrimento. Uma hipótese que à primeira vista poderia ser libertadora, revela-se, no decorrer de um roteiro genial, uma forma cruel de apagar experiências de vida que fazem parte da própria história dos personagens, eliminando portanto, parte da matéria prima de que eles mesmos são feitos, ou seja, do que os constitui como Joel e Clementine. No entanto, consequências ainda mais deletérias do que abolir uma parte de suas personalidades, aparecem no decorrer do filme: a supressão de suas memórias impede que os personagens possam evoluir emocionalmente, já que impede a possibilidade de aprendizado pelas experiências vividas.
A impossibilidade de evolução, em um tempo sem memória, nos é apresentada pela sacada incrível do roteirista, que só vamos perceber no final do filme, pois, diferentemente de uma narrativa homérica, em que a história e o tempo seguem uma sequência linear, o filme se passa em um tempo circular que gira em torno desse processo que eliminará totalmente qualquer traço de Clementine das memórias de Joel. Assim como os personagens, percebemos com certa perplexidade ao final do filme, que o primeiro encontro do casal, o momento que dá inicio à sequência da história, sendo a primeira cena a partir da qual todos os acontecimentos irão se desenrolar é, ao mesmo tempo, o final da história: ou seja, a primeira cena do filme é igual à ultima cena. Nesse momento, como espectadores, somos levados a uma sensação opressiva pela revelação surpreendente de um tempo circular, o tempo que se apresenta como um eterno retorno, na criação de Nietsche em “Zaratustra”. Com uma grande diferença porém: aqui, as memórias de Joel e Clementine são eliminadas, não existindo, portanto, a possibilidade de qualquer redenção pela transformação que a potência da vida mesma imprime ao passado, re-significando as experiências vividas como propõe Nietsche (Machado, 2004).
No filme, somos salvos dessa angústia de uma aparente prisão em um tempo circular, que se repete infinitamente, por um artificio do filme, dificilmente possível ao nos depararmos com situações semelhantes na vida. Uma personagem secundária, que até então aproximava-se da caricatura de uma garota infantil e deslumbrada, súbita e dolorosamente, descobre-se numa patética repetição de uma experiência de apaixonamento já vivida, porém apagada de sua lembrança. Após a recuperação da sua memória, essa personagem secundária consegue resgatar e restituir, ao casal Joel e Clementine, suas memórias, e a nós espectadores, a esperança de um final feliz: a vida é uma experiência atemporal afinal!
Do filme de Gondry, salto para o livro de Fernando Pessoa, “Mensagem”, publicado em 1934, um ano antes da morte do autor, pela Parceria Antônio Maria Pereira. Essa obra trata do glorioso passado de Portugal. Pessoa se utiliza da palavra “Mensagem” para o título do livro, a partir de uma condensação da expressão latina: Mens agitat molem (O espírito move a matéria), uma citação de Virgílio (70-19 AC): Eneida, capitulo VI – No Mundo dos Mortos. Nessa passagem, Eneias encontra seu pai, Anquises, a quem pergunta quem são aqueles que eles veem bebendo das águas do Lethes, o rio do esquecimento. O pai lhe responde então, que são as almas que hão de vir a ter corpos e esquecem as suas vidas passadas, a sua história, bebendo dessas águas do rio do esquecimento.
Considero uma preciosidade essa introdução de Pessoa ao seu livro a respeito da história de Portugal, lido e relido inúmeras vezes por mim. Compartilho sua concepção filosófica de que o ser humano, assim como suas produções, se constitui historicamente, e que a sua atualidade, a forma como se apresenta, é o resultado das inúmeras experiências que o constituíram. Como produções humanas, penso que as Instituições também se constituem ao longo do tempo, adquirindo características próprias ao longo de sua história que, somadas, passam a defini-la de uma certa maneira, de tal modo que, ao ouvirmos uma menção ao seu nome, identificamos de imediato as características que lhe são peculiares.
Chego assim a nossa Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, motivo e inspiração para este texto que pretende homenageá-la já que, em 9 de agosto de 2021, estaremos comemorando seus 70 anos desde que, em Amsterdã, no ano de 1951, “sentadas no auditório da sala onde a IPA realizava o seu XVII Congresso Internacional, Adelheid Koch e sua analisanda, Lygia Alcântara do Amaral, ouvem a ratificação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo como membro daquela instituição” (Morehtzon, 2014).
Era a realização de um sonho, há muitos anos sonhado. No início, por Durval Marcondes que, ainda estudante de medicina, nos idos de 1919, ficara irremediavelmente fascinado pelas ideias de um certo Dr. Sigmund Freud, apresentadas em artigo escrito por seu professor, Franco da Rocha. Tanto que, alguns anos depois, em 1927, Durval consegue reunir vários amigos médicos, poetas, escritores e educadores, entre eles o próprio Franco da Rocha, Pedro de Alcântara Machado e Menotti Del Picchia, para a fundação da Sociedade Brasileira de Psychanalyse, a primeira da América Latina, que tinha por finalidade tornar-se um centro coordenador dos estudos e da divulgação das ideias de Freud. Já no ano seguinte, em 1928, Durval edita a Revista Brasileira de Psychanalyse – órgão da Sociedade Brasileira de Psychanalyse que, embora tivesse vida curta, impressionou Freud a ponto deste escrever a Durval:
Muito estimado colega,
A chegada da nova Revista Brasileira de Psicanálise muito me alegrou. Que um fecundo futuro lhe seja reservado! O efeito que se seguiu ao seu recebimento foi que eu comprei uma pequena gramática portuguesa e um dicionário alemão-portugues. Quero ver se assim eu consigo ler a Revista por mim mesmo, durante minhas férias.
(do acervo do Centro de Documentação e Memória da SBPSP)
A partir de 1934, o sonho de Durval Marcondes passou a ser um sonho compartilhado por duas incríveis mulheres, suas alunas no Curso de Educadoras Sanitárias do Instituto de Higiene Mental: Virginia Leone Bicudo, de origem proletária, negra, formada na Escola de Sociologia e Política, única mulher de sua turma; e, mais tarde, Lygia Alcântara do Amaral, descendente da aristocracia cafeeira mineira, professora primária. As duas alunas foram tomadas da mesma paixão do seu professor pela Psicanálise, e os três compartilharão esse sonho que se tornará realidade graças à dedicação e entusiasmo desses sonhadores.
Não conheci Durval Marcondes, porém tive a honra de fazer supervisões e aulas durante minha formação com essas duas psicanalistas vibrantes que, até o fim de suas vidas, permaneceram apaixonadamente dedicadas à formação de novos analistas, provavelmente com o mesmo entusiasmo com que iniciaram essa aventura psicanalítica. Nos seus últimos anos de sua longa vida, aqueles analistas que a procuravam para reanálise, D. Lygia propunha uma experiência analítica intensa, diária, porém com a duração exata de seis meses. “Não posso me comprometer por mais tempo nessa altura da vida”, dizia ela. D. Virginia, por sua vez, foi uma das fundadoras do Núcleo Psicanalítico de Brasília, que viria a se tornar a Sociedade Brasileira de Psicanálise de Brasília. Durante muito tempo permaneceu numa espécie de ponte aérea entre as duas cidades, possibilitando a análise didática e supervisões de muitos colegas que viriam a ser os futuros Analistas Didatas de Brasília.
No entanto, contaram certamente com outros sonhadores que, por sua vez, passaram também a trazer seus sonhos para compartilharem com o grupo. Sem dúvida, Dra. Adelheid Koch, membro da Sociedade Psicanalítica de Berlim, foi um deles, tornando-se tão fundamental quanto Durval, Virginia e Lygia para a criação da nossa Sociedade. Às vésperas da Segunda Guerra, durante o XIV Congresso da IPA em Marienbad, Ernest Jones, sabendo dos planos de emigração de Adelheid, conta a ela que Dr. Durval Marcondes procurava um analista didata para trabalhar no Brasil, com a finalidade de fundar uma Sociedade de Psicanálise. Essa corajosa mulher, juntamente com seu marido e duas filhas, frente ao violento crescimento das forças nazistas na Europa, considerou a proposta e aceitou vir para o Brasil.
Refinada e culta, não deve ter sido fácil para Adelheid se estabelecer no Brasil, aprender Português e se habituar a uma São Paulo provinciana. No entanto, segundo Morehtzon, Adelheid diz a Durval estar pronta para começar a atender pacientes em 1937. Ela estava com 40 anos e ele, 37. Àquela altura, Durval e seu grupo de aficionados formado por Virginia Leone Bicudo, Flavio Dias e Darcy Mendonça Uchoa e Frank Philips, eram os potenciais candidatos à formação. Em 1944 o grupo reúne-se no número 42 da rua Siqueira Campos, casa de Durval, para darem mais um passo na direção da institucionalização da psicanálise no Brasil: a oficialização do Grupo Psychoanalytico de São Paulo, que evoluiria para SBPSP.
Essa dupla só́ seria desfeita pela morte de Adelheid em 1980, seguida pela de Durval um ano depois. Adelheid atuou permanentemente como divulgadora da Psicanálise na Sociedade Brasileira, através dos cursos e palestras que promoveu e como autora de inúmeros artigos na imprensa. “Adelheid já́ envelhecida e gravemente doente faz sua derradeira profissão de fé́ na Psicanálise: chama de volta seu ex-analisando, Felix Gimenes, agora na condição de seu analista, retomando com ele suas permanentes reflexões sobre a vida humana, já́ sob a névoa da morte” (Morehtzon, 2014). Durval se dedicou ao trabalho com a Psicanálise, como Presidente da SBPSP por nove anos e como professor, analista e incentivador dos jovens em formação por toda a sua vida.
Compreendo o sonho como um mito particular que expressa uma versão armazenada e comunicável de uma experiência emocional em linguagem mitológica, disponível para o pensamento onírico e que por meio da verbalização, torna-se disponível também para o pensamento consciente. Não apenas o sonho noturno nosso de cada dia, particular e privado, mas incluo nessa definição também os sonhos que trazemos em nosso íntimo, que se originam da soma das nossas experiências afetivas ao longo da nossa vida, nossa história, e que podem vir a ser sonhos compartilhados.
Penso ser fundamental sonhar a Psicanálise e a formação, buscá-las no mais profundo do ser, da própria experiência de vida, como o fizeram nossos pioneiros. Demora-se muito a perceber que a Sociedade Brasileira de Psicanálise é a soma de todos nós que a ela pertencemos – cada um dos membros, que ao longo dos anos e até hoje, traz consigo o seu sonho pessoal sobre a formação e a Psicanálise, e que, ao ingressar na Instituição, verá seu sonho evoluir para realidade ao se tornar um sonho compartilhado por muitos.
Certamente foi um objeto de amor que no passado motivou Freud a criar a IPA e, alguns anos depois, alguns pioneiros a criarem as diversas Sociedades de Psicanálise pelo mundo, objeto esse que, na atualidade, constitui o elemento unificador de todos nós seus membros: esse sonho/ideia, essa arte/ciência que chamamos Psicanálise.
* Carmen C. Mion é presidente da SBPSP. Membro efetivo e analista didata da SBPSP. Docente e supervisora do Instituto de Psicanálise Durval Marcondes.