Documentário conta a corajosa trajetória de Aracy, ‘anjo de Hamburgo’ e musa de Guimarães Rosa
Fez isso contrariando circulares secretas do Itamaraty da época de Getúlio Vargas: com uma política migratória restritiva, os consulados na Alemanha eram instruídos a não conceder vistos de entrada para judeus. Aracy chegou a usar clandestinamente o carro do serviço consular para transportar judeus, que escondia em casa; na fuga, ela acompanhava os refugiados até o navio e, fazendo uso de sua imunidade diplomática, levava suas joias e dinheiro na própria bolsa, para evitar que fossem confiscados pela polícia nazista. Já na velhice, ao ser perguntada por que se arriscara ao conceder vistos a judeus, Aracy respondeu: “Porque era justo”.
Combinando depoimentos e imagens poéticas, o longa de Ciocler reconstitui essa história com honestidade, mas o filme poderia ser bem melhor se pudesse fazer uso de textos e imagens de Guimarães Rosa, com quem Aracy foi casada por mais de 30 anos. Mas os herdeiros do escritor (de seu primeiro casamento) não autorizaram, como não autorizaram tampouco a publicação dos “Diários de Hamburgo”, precioso relato de anos decisivos da vida do autor de “Grande Sertão: Veredas” – aliás dedicado a “Ara”, Aracy, que teve uma enorme influência em sua obra. Por isso o documentário é inteiramente focado nela: Rosa, o outro protagonista dessa história, praticamente não aparece. Já os Diários permanecem inéditos, privando leitores e estudiosos do contato com a obra, que cobre o período de 1938 a 1942.
O documentário de Caco Ciocler complementa a biografia “Justa – Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: trocando a Alemanha nazista pelo Brasil” (Record, 518 pgs. R$ 62), da historiadora Mônica Schpun. Mônica entrelaça a história de Aracy com a de uma jovem judia alemã que ela socorreu, Maria Margarethe Bertel Levy. Juntas, Aracy e Margarethe criaram uma rede de solidariedade e uma rota de fuga para judeus da Alemanha rumo ao Brasil.
A história de Aracy é fascinante: separada do primeiro marido e com um filho pequeno, ela se mudou para a Alemanha em 1934, já com Hitler no poder, indo morar com uma tia. Fluente em alemão, francês e inglês, conseguiu emprego no consulado brasileiro em Hamburgo, onde logo se tornou responsável pelo setor de vistos. Chocada com a perseguição aos judeus, ela emitiu quase uma centena deles, para isso contando com o apoio, a partir de 1938, do jovem diplomata João Guimarães Rosa, que logo seria nomeado cônsul-adjunto na cidade. Os dois se apaixonaram, casaram-se em 1940 e voltaram ao Brasil em 1942. Companheira de três décadas, Aracy foi também uma leitora atenta e participativa das criações literárias de Rosa. Foi em Hamburgo que ele adotou o hábito de escrever em cadernetas de anotações. Quando o escritor chegou à Alemanha, já separado da primeira mulher, que ficou com as duas filhas no Brasil, ele ainda não havia publicado nenhum livro. Levava na bagagem um copião de sua primeira obra, o volume de contos “Sagarana”.
Chamada de “Anjo de Hamburgo”, Aracy é a única mulher citada no Museu do Holocausto, em Israel, entre os 18 diplomatas que salvaram judeus da morte – o embaixador Luiz de Souza Dantas também mereceu a honraria. Em 1982, ela foi reconhecida como “Justa entre as Nações”, um título dado pelo governo israelense a pessoas que correram riscos para ajudar judeus perseguidos. Aracy morreu quase esquecida, em 2011, aos 102 anos, vítima de Alzheimer. Por que sua história é tão pouco conhecida?
Fotos:Aracy Moebius de Carvalho em foto de 1939, em Hamburgo. (Divulgação)Poster do filme ‘Esse viver ninguém me tira’. (Reprodução)