Seminário de Psicanálise com o Psicanalista BERNARDO TANIS

Bernardo Tanis

no Núcleo de Psicanálise de Marilia e Região

Dia 11 de agosto de 2018

 – PRECISAMOS FALAR SOBRE A CLÍNICA PSICANALÍTICA ATUAL –

Qual é o setting possível hoje?

Tema abordado por: Cibele M. M. di Battista Brandão

Comentado por: Bernardo Tanis

I – Introdução

 

II –  O medo do colapso e a busca urgente de um ressignificado

 

III –  A busca para ressignificar a vida

 

Obviamente, meu intuito é convidá-los ao diálogo e intercâmbio de ideias, sem nenhuma pretensão de apresentar respostas prontas, mas sim de encarar com entusiasmo a indagação, as ricas contribuições de alguns analistas que apontam na direção do pensamento clínico atual, de quem é e como trabalha o analista na atualidade”.

 

Bernardo Tanis

 

I – Introdução –

Recentemente, lendo um artigo de Cecil José Rezze (2012) intitulado: Como formar o psicanalista ou Como ser ou tornar-se psicanalista, deparo-me com uma frase que em si não traz novidade de sentido, mas a forma como foi escrita traz uma verdade que traduz nosso trabalho cotidiano. Falando sobre o agora da sessão ele diz: – “O fato é indescritível e inefável, mas tendo sido vivido deixará marcas indeléveis em nossa existência… Se o relato de uma experiência em uma sessão ainda for seguido de pergunta: – “então, em sua opinião o que está acontecendo? Com muita frequência a pergunta traz perplexidade porque se houve o relato da sessão então já foi dito o que estava acontecendo. No entanto o evolver desta pergunta nos leva, muitas vezes, a sítios desconhecidos e intrigantes”.

Pensando assim encorajo-me a ir de encontro a esses sítios desconhecidos e apresento-lhes  situações clínicas por mim conduzidas. E que foram escolhidas a partir de situações que trouxessem a marca da chamada clínica contemporânea. E trago-as para que juntos possamos perguntar: – então, na opinião de vocês o que está acontecendo? Acrescento ainda que as situações clínicas escolhidas tem o intuito de suscitar a lembrança de outras que certamente tem um denominador comum entre muitas. Ana e Fred (meus pacientes) representam muitos outros  que nos procuram para transformar angústias, sofrimentos e dores e que usam também estratégias para negar ou superar essas dores. Usam da força pulsional do narcisismo, da compulsão à repetição, do sadismo e nos colocam vários desafios no manejo da clínica.

Escolhi situações propositalmente que não fazem parte de minha clínica, do dia a dia, que é de uma analista sênior – com anos de experiencia consolidada em sua maior parte de processos conduzidos nos moldes clássicos de quatro, três sessões por semana, que ocorrem num setting bem estabelecido. Escolhi situações que me colocam mais perto da chamada clínica contemporânea onde recebemos pessoas que tem urgência pelo atendimento, mas dispõem de projetos para a dupla analítica que não se propõe a essa demanda clássica que citei. São pessoas que trazem a necessidade do atendimento, porém muitas vezes nem ideia tem de um envolvimento tão intenso como requer a prática analítica clássica. Conversando com a Cassia Ottaiano na época da composição da organização desse encontro, e para nós surgiu o título: Precisamos falar da Clínica Contemporânea e esse título faz alusão ao título de um filme: Precisamos falar sobre Kevin. De certa forma essa frase caiu como expressão na linguagem popular querendo dizer que precisamos falar sobre um assunto que ninguém quer falar, mas se não falar ele cresce sozinho, à revelia e torna-se um problema que escapa ao nosso controle. E são questões que compõe a clínica de todo analista, quer falemos sobre elas ou não.

Assim temos para conversar questões como: traumas, limite da representação, número de sessões, frequência, atendimento por Skype, ameaças de suicídio, anorexia, cutting, bulimia, isolamento, dependência a jogos eletrônicos, adição a internet e mais uma lista infindável de questões. Às vezes a pessoa vem e nos diz no final do primeiro contato, Eu posso vir no máximo uma vez por semana! Penso que essa é uma das questões que precisamos conversar – Qual o setting possível hoje? Com o que lidamos e nos desafiamos hoje? O impacto do ser humano diante da vida é o que fica presente e sua necessidade de aprovação, o seu medo da morte, e o seu sentimento de menos valia. E trago-as para pensarmos juntos o que seriam os vértices importantes para serem considerados na condução do processo. Além disso acrescentamos uma questão sobre – qual a formação possível e esperada para nossos Institutos e Núcleos para capacitar o jovem analista a enfrentar os desafios clínicos atuais. São muitas questões para um tempo exíguo, mas vale a pena pelo menos indagarmos.

 “E o que é a psicanálise senão a oportunidade para que nasça o que nunca nasceu, que se crie o que nunca foi criado ou que surja algo do cliente que possa lhe permitir ter prazer ou satisfação na existência. “

 

Cecíl  José Rezze

II –  O medo do colapso e a busca urgente de um ressignificado –

Relatarei uma breve experiência de atendimento psicanalítico ocorrida no final de minhas últimas férias. Estava de volta para onde resido, utilizando os dias que restavam das férias para me organizar e recomeçar o trabalho dali poucos dias. Recebo um pedido para recomeçar antes. Esse é o recado deixado em minha secretária eletrônica onde estava gravado a data que eu retornaria. A pessoa ouviu e disse se seria possível eu dispor de alguns horários caso eu estivesse de retorno. Era o marido quem falava sobre a esposa e explicou também que eles não residem aqui, mas que passavam alguns dias em visita aos familiares e se eu aceitaria atender sua esposa que segundo ele estava necessitando bastante. A família estava preocupada com ela.

Sim! Aceitei… E passo agora chamá-la de Ana. Ana veio e logo no início tivemos uma empatia. Ela entrou sentou-se diante de mim e começou a chorar. Chorou muito. Depois disse-me: Não fique preocupada, estou bem. Mas, estou precisando conversar. Tive um dissabor muito grande e minha família ficou aflita. Fiquei 3 dias no quarto sem sair. Chorei demais, mas depois desse mergulho, quarta-feira sai do quarto e estou bem. Mas fui machucada. Tenho dois filhos, 65 anos e me dou bem com meu marido. Somos muito companheiros. Meu filho é casado e tem duas filhas. As netas e minha filha solteira são minha alegria. As meninas vão em casa a e a gente brinca, saímos a tarde, dormimos e vemos TV. E agora minha nora disse que elas não irão mais ficar comigo porque nós as prejudicamos. Quando estão conosco segundo ela, elas comem errado e ficam os hábitos alimentares diferentes do que ela tenta ensinar para as meninas. É isso. Eu precisava falar, mas semana que vem vou embora só volto daqui três meses. Minha nora falou que nós estragamos as meninas. Nem sei se adianta vir um pouco aqui e depois já vou embora!

Bem, tínhamos pouco tempo. Mas achei que poderia valer a pena. Enquanto eu a ouvia fiquei prestando atenção em sua figura. Era uma mulher boa, disposta, bacana. Eu via além disso, uma dureza uma postura masculinizada. Sem nenhum traço de vaidade. Comecei a pensar que talvez essa dureza que no momento eu via, fosse extensiva a suas emoções. Perguntei-lhe se ela sentia medo de não ser aprovada nas coisas que fazia. E ela disse-me que demais. Teve uma formação rígida, exigente. Sentia que conseguiu soltar-se um pouco depois que se casou. Tinha um enorme amor pelo seu pai que faleceu há uns 20 anos. Ela ainda tem sua mãe e cuida com carinho dela. Mas, ligação forte mesmo tem com suas netas. Quando nasceram ela levou a nora e o filho para sua casa e se esmerou bastante. Fez o que pode e nessa época sentia-se aceita por ela. Escrevo sobre essa experiência pois impactou-me a forma que essa paciente pode transmitir-me em pouco tempo a importância dos vínculos formados principalmente esses que trazem a marca da continuidade e que parece-me que contém um simbolismo. O fato da nora desaprová-la provocou nela um medo do colapso e que tudo desmoronasse. Todo seu empenho e luta poderiam ficar sem significado, caso ela fosse rechaçada e destituída de seu lugar de avó querida, aprovada e com alguma sabedoria. O aspecto que considerei significativo foi que tínhamos pouca oportunidade de encontros, mas foi possível perceber que parte de seu sofrimento tinha ligação com a necessidade de aplacar um severo supereu que em suas exigências teria medo de fracassar em funções que ela consideraria de absoluta importância tais como ser uma matriarca respeitada. A ameaça do rechaço é maior que o que estava na realidade acontecendo. Mesmo na brevidade do encontro prestei atenção em questões transferenciais.

Não deixei de pesquisar como ela chegou até mim. Disse-me que seu marido falou no meu nome, mas ela aceitou de pronto por estar precisando e por não me conhecer. Queria alguém que ela pudesse localizar quem era, mas não queria alguém que ela tivesse contato. O conhecimento e referência era meu marido. E eu lhe perguntei se isso lhe sugeria a existência de um casal parceiro. Se ela procurava parcerias sogra e nora, avó e netas, e marido e mulher, ela e sua família bem unida? Ela disse que sim e acrescentou uma outra coisa – Meu marido falou que você o deixa viver. Não fica aprisionando-o. Comigo mesma pensei – ela procura mais liberdade!! (Dentro dela).

Optei por termos uma boa interlocução escutá-la e tentarmos aprender discriminar e ressignificar as emoções. Não senti medo do que eu iria encontrar. Tivemos cinco sessões e no final ela disse-me que não sabia como explicar a importância que teve para ela aqueles encontros. Parecia ser tão pouco e ela tinha a impressão de muito. Pensou em fazer disso um hábito. Vindo para cá novamente gostaria de saber se poderíamos fazer um condensado de sessões. Pensei que ela de fato havia me trazido situações difíceis para ela enfrentar, que tinham aspectos primitivos envolvidos, mas tinha também a aceitação de um vínculo novo em sua vida que não deixou que ela mergulhasse num poço. Mesmo porque no decorrer daqueles dias, ela mesma pode perceber um acesso diferente a experiencia emocional.

Ela pode sair do impacto que a ordem da nora causou, para a observação de que esses anos passados de forma tão intensa junto as netas tinham criado raízes e existia agora uma ligação que anda sozinha e não dá para ser terminada por decreto. As netas a solicitam e gostam dela.

Nem todos os nossos pacientes que têm este medo de um breakdown queixam-se dele no início de um tratamento. Alguns o fazem, mas outros têm suas defesas tão bem organizadas que somente após o tratamento haver efetuado considerável progresso é que o medo do colapso vem para o primeiro plano como fator dominante. Mas devemos nos lembrar que ele está presente sempre que um vínculo desse tipo inicia.

Winnicott (1963) afirma que o medo clínico do colapso é o medo de um colapso que já foi experienciado. Ele é um medo da agonia original que provocou a organização de defesa que o paciente apresenta como síndrome de doença. É um conjunto de emoções que o acompanha. Na análise temos a oportunidade de analisarmos juntos muito dessas diversas facetas. Segundo minha experiência existem momentos em que é preciso dizer a um paciente que o colapso, do qual o medo destrói-lhe a vida, já aconteceu. Trata-se de um fato que ele já carrega consigo, escondido no inconsciente. O medo de ficar sem recursos para lidar com o sofrimento passa ser um companheiro de viagem.

O paciente tem de continuar procurando o detalhe passado que ainda não foi experienciado, e esta busca assume a forma de uma procura deste detalhe no futuro. Como por exemplo na situação citada, a paciente perceber que o que ela havia construído com as netas ninguém pode destruir. O medo de destruição era outro. Tinha a ver com necessidade de aprovação.

O intuito desse relato é chamar a atenção para a possibilidade de que o colapso já tenha acontecido, próximo do início da vida do indivíduo. O paciente precisa “lembrar” isto, mas não é possível lembrar algo que ainda não aconteceu, e esta coisa do passado não aconteceu ainda, porque o paciente não estava lá para que ela lhe acontecesse. A única maneira de “lembrar”, neste caso, é o paciente experienciar esta coisa passada pela primeira vez no presente, ou seja, na transferência. Esta coisa passada e futura torna-se então uma questão do aqui e do agora, e é experienciada pelo paciente pela primeira vez. É este o equivalente do lembrar, e tal desfecho constitui o equivalente do levantamento da repressão que ocorre na análise do paciente psiconeurótico. E aí então que a questão da transferência se torna de vital importância. O vínculo estabelecido entre analista e analisando tem um colorido e características diferentes de todos os demais. Ele tem a característica de mobilizar revivencias. E com isso o paciente pode sentir e estar próximos de emoções nunca sentidas, porém que estiveram presentes a espera de um continente. O analista usa toda sua experiência para fazer dos encontros, nem sempre dentro do setting ideal, uma possibilidade do paciente aprender olhar mais para dentro e valorizar uma interlocução consigo mesmo.

Finalizo esse tópico utilizando-me de uma colocação feita por Bernardo Tanis no seu artigo já citado, que a meu ver sintetiza o que buscamos na correlação clínica-teoria. Diz ele “esse cenário clínico torna indispensável retornar com força renovada ao estudo do narcisismo, retornar à constituição do eu e às relações intrínsecas com o dualismo pulsional de vida e morte, mantendo uma atenção redobrada à natureza masoquista imbricada no eu ideal que neutraliza a força de Eros”.

São palavras que colocam a importância de uma reflexão sobre a clínica contemporânea que contempla as questões que compõe o enquadre atual sem nos esquecermos de citar a questão também essencial do enquadre interno do analista, suas possibilidades e limites.

“ De fato, qualquer minuto pode nos colocar em contato com o sentimento de eternidade, quer dizer é um momento que foge ao tempo cronológico. Percebi com esse paciente idoso, a imagem do fim da vida, aqueles minutos no fim da vida podem mudar o significado de toda uma vida”.

Danielle Quinodoz

III – A busca para ressignificar a vida –

Pensando nessa questão do enquadre interno do analista há um aspecto levantado por Danielle  Quinodoz em seu livro:  Vieillir: une découverte  (2009). Bastante importante e útil para nossas reflexões.

Mostra-nos ela que no exercício de sua atividade, um analista tem uma idade real, mas também várias idades durante um mesmo dia, segundo a variação de papéis transferenciais que lhe atribuem seus analisandos. É importante que ele possa ter em conta sua idade real e tudo o que ela representa, sem a negação da passagem do tempo. Assim como é importante perceber as atribuições que lhe estão sendo feitas. A multiplicidade das idades investigadas traz um caráter particular à sua atitude a respeito de seu próprio envelhecimento e à aproximação da morte. Inclusive, o fato de transferencialmente os analisandos solicitarem, com frequência, sua potência e saúde, é um aspecto que também conta em seu próprio trabalho de envelhecer. Ele envelhece, mas sente-se útil. Como a experiência de ver o tempo de vida passar é angustiante para o ser humano, esse aspecto geralmente é bastante observado pelos analisandos. Eles tentam ver como o analista lida com o seu próprio envelhecer, através das atitudes e gestos concretos. Um analista exprime a seus pacientes a consciência que ele tem de sua idade real; e de como ele aproveita ou não o desenrolar do tempo. Há vários aspectos do setting analítico que tratam dessa questão: a frequência e a duração das sessões, a data de férias, as reações frente à separação, a questão do término da análise e por fim, a questão de quando se aposentar. Da mesma forma, também é importante o analista dar-se conta da idade, aceitando esse papel como ferramenta útil para seu trabalho; e da que lhe é atribuída também, pois através disso, ele leva em consideração a realidade psíquica de seu paciente e a relação que ele propõe criar entre ambos. O analista é sucessivamente investido de vários personagens importantes do mundo interno de seus analisandos. Diferem o sexo, as idades e os papéis. Mas, o objetivo é a ampliação da percepção que o analisando possa ter de seu mundo mental. Na nossa concepção, essa ampliação, se verdadeira, acontece também no mundo interno do analista. A passagem do tempo traz para o analista várias vantagens. Uma delas é poder ver, muitas vezes, na prática, aquilo que, quando jovem, sabia mais na teoria. A experiência pode ajudá-lo a lidar com seus aspectos que se tornam deficitários, à medida que o tempo passa. Por exemplo, um analista passa a vida basicamente escutando. É particularmente difícil aceitar o aparecimento de uma deficiência de audição ou uma deficiência de memória. A perda objetiva precisa estar ancorada em um plano de troca entre a perda do objetivo, pelo ganho no subjetivo, até quando for possível. A intensidade de sua escuta interna pode compensar a diminuição objetiva da audição. A escuta interna é uma atitude do analista, que não procura entender somente o que um paciente fala, mas procura o conjunto das necessidades que são comunicadas através da linguagem não verbal; trata-se de uma escuta que vai além da audição das palavras. Essa é uma atitude que, na verdade, o analista cultivou durante toda vida. Temos à disposição conceitos como o da atenção flutuante, já sugerido por Freud nos primórdios da Psicanálise. Através de gestos, atitudes, entonações, os fenômenos da identificação projetiva, trazem a mensagem latente que há por traz do discurso manifesto. A capacidade da escuta interna do analista revela para o analisando sua própria capacidade de se escutar e, consequentemente, escutar melhor os outros.

O analista, quando leva em conta suas deficiências que começam a aparecer com os avanços da idade, pode receber seus analisandos dentro de um enquadre calmo e adequado, que favoreça compensar aquilo que se vai. Há, entretanto, um limite para isso, além do qual a escuta interna não pode mais ser compensada pela deficiência apresentada. Então, a hora de parar é chegada. A aceitação de certas perdas extremas é dolorosa, mas ainda há aqui a possibilidade de elaboração para o aproveitamento ou não de mais uma etapa da vida. É hora de retirar-se do trabalho; mas não da vida. Essa continua e pode ser criada uma nova etapa a ser usufruída.

A elaboração dessas questões traz a possibilidade do analista ampliar suas condições internas para receber o paciente idoso que, raramente, inicia uma análise por iniciativa própria. Geralmente, quem nota a necessidade são os familiares próximos ou os cuidadores. Como teriam a ideia de procurar pela análise, se provavelmente são pessoas que, em sua juventude, um processo como esse seria indicada somente para aqueles que apresentassem um quadro psicopatológico bem definido e com certa gravidade? É comum também a pessoa pensar que, nessa idade, não vale mais a pena empreender esse novo projeto. Para quê mudar, se o tempo de vida útil já se foi?

Meu primeiro contato com um paciente de idade bastante avançada para iniciar análise, foi rico e aconteceu de forma inusitada e contrária a descrita acima. O próprio paciente sentiu a necessidade, fez o pedido à família e conseguiu para si mesmo uma resposta do porque valeria a pena submeter-se a um processo analítico; visto que, na época, ele estava com oitenta e dois anos de idade.

Fred sentia-se perto de sua morte. Sentia-se angustiado e deprimido. E muito pressionado por uma situação interna que exigia dele um trabalho de elaboração. Em face a um fim que se anunciava próximo, estava muito inquieto pelo fato de ter sido por toda sua vida uma pessoa de trato bastante difícil. Denominou-se uma pessoa irascível, para definir-se diante de mim. Tal estado emocional havia feito com que todas as suas relações fossem pobres, distantes e muito atacadas por ele mesmo. Dizia sentir um arrependimento que o corroía, pois sabia que não haveria segundo tempo para esse jogo. Tal emoção motivou-o a pedir a seus familiares que encontrassem um analista que se dispusesse a vê-lo em seu domicilio. Quando fui chamada, lembro-me que desde nosso primeiro contato, eu esperava encontrar alguém difícil. Para nossa surpresa, minha e dele, nossos encontros ocorreram num clima favorável e nossa ligação ocorreu de forma fácil e disponível. Falávamos de situações e emoções difíceis, angustiantes, mas trabalhávamos, no sentido mais prazeroso que esse verbo possa ter. Ele procurava alguém que o ouvisse. Sentia necessidade de recontar sua história de vida, em detalhes, relatando fatos passados há décadas. Falou-me muito como admirava sua mãe. E eu, nesses momentos, vivia a curiosa experiência de olhar para ele, um ancião, e ver um menino. Fred sentia arrependimento por ter sido agressivo em seus contatos e tinha como sonho, que se lhe fosse dada uma chance de recomeçar; mudaria tudo em sua vida. Para uma pessoa que havia sido tão refratária em suas relações, dizia, surpreendentemente, que quando me relatava essa angústia e pensava na possibilidade de tudo ter sido diferente, sentia-se reconfortado. Passou a entender que esse reconforto justificava nossos contatos. Sabia que não haveria tempo para muitas outras mudanças. De fato, seu falecimento ocorreu quando ainda não havíamos completado três meses de trabalho. Mas, existia também conforto quando pensava em me dar elementos para continuar meus estudos e perguntava-me se nossas conversas poderiam ser um dia úteis para alguém. Dizia-me que se nossa ligação servisse e fosse útil para mim, para ele já seria razão suficiente e sentiria ter valido a pena. Ele tinha razão. Houve muitos frutos. Esse encontro ocorrido há muitos anos atrás, motivou-me para outros.

Segundo ainda Danielle Quinodoz, a Psicanálise não traz respostas para perguntas que são urgentes a uma pessoa idosa; mas podem ajudá-la a criar as respostas para si mesma, que transformam angústias presentes.

A necessidade de conceber a vida como um todo, que tenha coerência com começo, meio e fim pode estar presente em cada idade. Nos mais jovens, ela pode ficar mascarada, pois eles estão ocupados com múltiplas atividades urgentes. Eles têm a impressão de que uma longa vida os espera e inconscientemente colocam para frente a sua satisfação de necessidade por coerência. Em contrapartida, os idosos são mais motivados por essa pressa. São motivados pela necessidade de obter um sentido coerente da vida, como também aquilo que ficou reprimido passa a reclamar uma compreensão. A aproximação do fim traz a urgência de buscar uma significação da totalidade, de preferência com a integração do passado com o presente, a fim de preparar o futuro, mesmo se houver o risco de que ele seja breve. A reconstituição das lembranças passa a jogar um papel importante para o trabalho do envelhecer.

A busca pela ressignificação das experiências vividas, passa pela questão de elaboração das perdas. O trabalho de elaboração das inúmeras perdas vividas na velhice pode trazer a motivação pela busca do processo analítico, pois nesse momento, pode haver episódios de depressão e angústia.

Quanto mais idoso um paciente, mais numerosas são as perdas que ele deve enfrentar. Pode ser perda de um ente querido, perda de uma atividade, ou ainda perda de um aspecto da saúde. Geralmente, todas elas veem em conjunto. Mas, para certos pacientes, é uma perda particular e além da conta, seguida depois de outras, que está na raiz de um processo de luto. Às vezes, diante de uma perda atual, um luto anterior, até mesmo na infância, que não foi suficientemente elaborado, volta a fazer parte de angústias atuais que demandam um entendimento e elaboração. Geralmente, é uma perda que mobiliza uma perda catastrófica reativada inconscientemente. O seu sentimento de identidade precisa ser recuperado ou reelaborado para trazer certa estabilidade e possibilidade de poder viver sua vida até o fim.

Nossos encontros se deram sempre em sua casa. Ele nunca foi ao meu consultório pois havia uma dificuldade de locomoção. Curiosamente quando eu chegava, uma funcionária me recebia e os familiares não se faziam presentes. Entendi que respeitosamente todos colaboraram para a construção do setting.

Finalizo esse estímulo para nossa reflexão de hoje acrescentando uma questão sobre a possível demanda de nossos pacientes atuais que nos trazem principalmente a necessidade de encontrar um lugar internamente para inscrever o que for conhecendo de sua própria imagem e de suas relações objetais renovadas.

Referências:

Quinodoz, D. (2009). Une seconde d’éternité. In: Vieillir: une découverte. (pp. 15). Paris: PUF.

Quinodoz, D. (2009). Les âges de la vie. In: Vieillir: une découverte. (pp. 45). Paris: PUF.

Rezze, C. J. (2012). Como formar o psicanalista ou como ser ou tornar-se psicanalista. In P. Montagna (Ed.), Dimensoes: psicanálise. Brasil São Paulo (pp. 269-279). São Paulo: SBPSP.

Rezze, C. J. (2014). Movimentos na Psicanálise Atual: expansões e rupturas – a linguagem estética na psicanálise. Trabalho apresentado em 15 de março de 2014, na Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (pp. 3).

Tanis, B. (2017). O pensamento clí­nico e o analista contemporâneo. In E. Rache (Org.), B. Tanis (Org.), Roussillon na América Latina (pp.19). São Paulo: Blucher.

Winnicott, D. W. (1994). O medo do colapso: breakdown. In D. W. Winnicott, Explorações psicanalí­ticas (pp. 70-76 ). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1963).

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