As Horas

Diretor: Stephen Daldry

Baseado no livro de Michael Cunningham “As Horas” que por sua vez é baseado no livro de Virgínia Woolf – Mrs. Dalloway ( 1925). Lançado em 2003.

Em primeiro lugar agradeço ao Núcleo de Psicanálise de Marília e Região o convite que me foi feito para comentar o filme “As Horas”. Esse convite vem através do Departamento Cultural, que em sua programação desse ano pretende dar suporte para nossas Atividades Científicas. Pretendemos fazer uma atividade casada, pois a Psicanálise e a Cultura tem um profundo entrelaçamento, não se faz Psicanálise sem o seu contexto Cultural. A literatura e o cinema podem mostrar de forma contundente o problema, o conflito e o foco do sofrimento humano. Por exemplo, o filme de hoje trás um problema atual tão frequente e enigmático que é a questão do suicídio e da depressão. Sabemos que hoje o suicídio é o 2º fator de causa de morte no mundo, vindo a seguir apenas dos acidentes de transito. Fator esse que muitas vezes trás em seu bojo a mesma causa desse 2º lugar.

Quero agradecer também a presença de todos vocês. E uma presença que estará aqui comigo da SBPSP. Essa presença está na pessoa de Cecília Orsini, membro Associado da SBPSP, que comentou esse filme numa atividade da Associação dos Candidatos do Instituto, lá em São Paulo, no mês de maio próximo passado. Essa apresentação foi gravada em CD e foi muito útil para mim por multiplicar e ordenar várias idéias. Portanto, muitos prismas que eu aqui trouxer terão a ver com a audição desse CD e algumas outras leituras que acabei fazendo para tentar codificar melhor todo o impacto que me causou a primeira projeção que assisti do filme. “As Horas”, tem as excepcionais atrizes Meryl Streep, Julianne Moore e Nicole Kidman. Retrata 3 épocas, três mulheres em três histórias que se mesclam e se transformam pela influência de uma obra literária – Mrs Dalloway escrito por Virgínia Woolf. Michael Cunningham – o autor do livro faz uma ficção que lhe valeu o prêmio Púlitzer. Nesse livro ele faz um jogo de espelhos entre o livro de Virgínia e sua obra literária “As Horas’. Cunnigham é grande admirador da obra literária de Virgínia. Leu Mrs. Dalloway aos 15 anos e diz que essa leitura transformou sua vida. Virgínia é atualizada por essa obra de Cunningham – ler Virgínia depois de se ler “As Horas” tornou-se mais fácil. Assim que terminei de assistir “As Horas” minha primeira reação foi – não gostei, e em seguida a preocupação – O que vou comentar? Essa foi uma rápida impressão que ao mesmo tempo foi substituída por uma inquietação que me fez sair a procura de comentários, leituras e opiniões sobre o filme. Afinal, trata-se de uma obra densa e sabidamente repleta de valores, consagrada de cara pela leitura em que se baseia, direção, fotografia, o trio de atrizes, a obra de Virgínia, etc. Nessas leituras algo fez sentido para mim a respeito desse desagradável impacto. Ouvindo o trabalho de Cecília Orsini que por sinal intitula-se “Por uma Lírica Singular da Depressão” – ( lírico – diz-se do gênero de poesia em que o poeta canta as suas emoções e sentimentos íntimos), soube que o filme é feito na tentativa de criar uma específica atmosfera – tecnicamente considera-se que ele não tem um roteiro, mas sim a criação dessa atmosfera. ( no caso, a depressão ) Virgínia Woolf inaugura ou participa de um tipo de narrativa baseada no fluxo da consciência. Não importa tanto os fatos, a estória ou a trama, mas a mescla dos sentimentos que entram nos planos que mais evidenciam os sentimentos internos dos personagens.

A técnica trás, para desvendar uma situação, uma pluralidade de vozes e pontos de vista. Para tolerar tal técnica diz Virgínia é preciso tolerar o obscuro, o espasmódico, o fragmentado e o fracasso.

Essa técnica do fluxo da consciência é usada por Virgínia na narração da estória, mas sabe-se que ela começou a ser usada como fruto de época pós primeira guerra, que a devastação que a vivência de destruição e incerteza trazida, passa a considerar ou ter que lidar com a destruição, construção interna das pessoas. Portanto, os sentimentos passam ser necessitados de ter expressão com essa atmosfera intimista. A narrativa que atravessa essa obra, essa maneira de colocar em primeiro plano o interno, já está presente em Proust, Joyce e vale aqui uma referência ao surgimento da Psicanálise, perto desses anos de virada de século em Mrs. Dalloway (1925) e depois em nossos dias.

“As Horas” é uma obra prenhe de sentidos simbólicos. Fala da condição feminina em mutação. Consequentemente, da masculinidade também em mutação. Onde se percebe toda a revolução dos papéis tradicionais desempenhados pelos pares – mudanças, mudanças e mudanças.

Na idéia das três personagens há o preparo para uma festa, o fantasma da morte e destruição rondando. Momentos banais do cotidiano – preparo de um bolo, compra de flores, conversas com a empregada, desencontro com filhos. Nesse tipo de narrativa, uma coisa que era invisível torna-se algo elementar, por exemplo: a cena do Passeio ao farol – todo símbolo que trás. Há um fluxo de realidade e profundidade vital de qualquer instante por mais banal e breve que ele seja. A intenção é fazer confundir a impressão de uma realidade objetiva. A tentativa será tematizada através de acontecimentos banais, toda a vida de uma mulher e a articulação de outros destinos que se cruzam e os múltiplos pontos de vista – e não a descrição de uma realidade objetiva, apenas. Veja, por exemplo, a cena em que a empregada Neli (que acompanhou Virgínia por toda a vida) lhe oferece pêras de sobremesa. Há uma tendência em mostrar o triunfo da empregada, que percebe sua soberania diante de uma patroa doente e carente e lhe infringe o mais banal, o mais repetitivo, e a patroa não tem força para revidar, escolher ou determinar a cena doméstica – com doçura a ao mesmo tempo pulso firme.

O importante nesse filme é a temática da depressão, a atmosfera que a circunda, e esta tentando ser vista como a incapacidade do exercício da própria singularidade, da individualidade, da subjetividade que cada um busca. O fio condutor seria tentar lançar um modo diferente de se pensar a depressão – essa seria vista como uma disjunção que pode ser mortífera. A disjunção é entre o papel tradicional exigido da mulher e o exercício de sua singularidade, a busca de sua identidade – não só a repetição de um papel esperado.

É sair um pouco da idéia da melancolia do superego que castiga o ego do indivíduo. É uma obra sobre o mundo feminino e seus profundos conflitos. As personagens retratadas – a primeira – a própria Virgínia que vive num subúrbio londrino nos anos 20, lutando contra a insanidade enquanto começa escrever seu primeiro grande romance Mrs. Dalloway. Virgínia irá sucumbir aos acessos de melancolia e alucinações que aconteciam no final da produção de suas obras – ela ficava sem saber o que fazer com ela mesma. Ela era feroz com os médicos que penaram para tentar tratá-la. Virgínia trava uma luta feroz contra o fantasma da melancolia – perde essa luta já em idade mais madura (1882-1941 – 59 anos).

O filme abre com a cena de seu afogamento e podemos comparar essa cena de abertura como o tema central de uma melodia – tudo o mais serão variações sobre o tema, no caso depressão e suicídio. A escritora era de uma inteligência incomum e seus livros encerraram um profundo estudo psíquico do sentimento humano – marcadamente o da mulher.

“Esse romance de Virgínia relata um dia na vida de uma mulher – o tic tac das horas que compõe. Clarissa vai se matar por causa de alguma coisa que na superfície aparenta ser bem insignificante. A festa será um fracasso, ou o marido mais uma vez se recusa em notar uma melhora que ela faz em si ou na casa. O segredo estará em transmitir intacta, a magnitude do desespero diminuto, porém muito real de Clarissa, em convencer por completo o leitor de que, para ela as derrotas domésticas são tão devastadoras quanto são para um general, as batalhas perdidas”.

O livro “As Horas” multiplica as referências a Mrs. Dalloway – enquanto organiza uma festa mostra a alma feminina. “As Horas”, seria o nome original do livro Mrs. Dalloway – ela precisa comprar flores e organizar uma festa e nessa tarefa descobre a si mesma. Essa tarefa simboliza o papel da mulher dentro da família – enfeitar (com as flores) e promover a alegria da família diante da vida (festa), manter o interesse pela vida dentro da família, puxar o cordão. Nessa tarefa corre em paralelo para as 3 mulheres um sinistro personagem interno – trava-se a luta contra a depressão. Há uma frase que é bastante importante no filme /livro – “O que a morte veio fazer na minha festa?” é a própria pergunta de Virgínia – que amava a vida, mas vive atormentada por acessos de melancolia.

As outras mulheres, a dona de casa Laura Brown, de Los Angeles nos anos 50 e a editora Clarissa Vanghan nos dias de hoje em Nova York enfrentam situações diferentes, mas entrelaçadas pelo livro que Virgínia escreveu, fundindo-se em um final surpreendente. Assim como as horas de um dia se encaixam e sobrepõem-se os destinos de três mulheres:- Virgínia atravessa também a vida de Laura Brown, infeliz dona de casa na década de 50, que vive para ler aquilo que a inglesa escreveu.

Ela tenta preparar um jantar, com falta de vontade, para comemorar o aniversário de seu marido. Com ele vive uma vida monótona e sem graça. Na voz narrativa de Virgínia, vemos Laura Brown despertar para um dia que promete ser úmido e pegajoso. Desce para preparar o café. “Abriu os olhos e sentiu que seria um dia problemático. Teria dificuldades de acreditar em si mesma”. Lê avidamente, em todos os instantes de angústia. Quer ver se consegue se animar e fazer um bolo perfeito. Tenta escapar de um morno e atroz cotidiano. Tem a festa do marido e filho estragada por sua melancolia. No filme aparece a angústia de perceber que não há ninguém para fazer aquele bolo. Qual é a mulher aqui nesta platéia que nunca sentiu essa angústia? Ter que fazer e sentir que não tem nada vital dentro de si para de lá tirar ânimo, alegria, comemoração que a família necessita? E qual o homem aqui que nunca sentiu o raiar de um dia e não ter porque abrir os olhos e ir para luta?

Em 90, a terceira personagem a editora

Clarissa Vaugham – é acusada pela filha de burguesismo, mesmo estando num casamento homo erótico – mas que mutatis mutantes possui as mesmas regras. A sua festa não se realiza e o desenrolar nos mostra um projeto desvalorizado de sentido e desencanto. Os convidados são tristes e desiludidos, mesmo sendo famosos e vivendo no topo do mundo.

Superando todas as expectativas, “As Horas” o filme consegue pela potência de suas imagens, transcender esse intricado de tramas, transformando-o brilhantemente em linguagem cinematográfica, arrastando o espectador para dentro de seus personagens como faz Virgínia apresentando-nos uma leitura refinada da depressão como lírica singular do feminino, assim como apresenta Virgínia na comovente festa insondável de seus mistérios escrevendo Mrs. Dalloway. E com essa obra indo muito além da demonstração de um quadro clinico, mostra-nos não apenas o foco da angústia feminina, mas a do ser humano contemporâneo. Lança um novo olhar sobre a depressão. Não é só a situação da mulher que foi há séculos reprimidas, mas é a angústia do ser humano. Não a angústia descrita pelos existencialistas. Mas, a angústia do vazio mais objetivo. O vazio do ser humano que gostaria de ultrapassar os limites impostos, mas não possui elã suficiente. Essa possibilidade de ultrapassar limites cria um novo homem – por um lado poderoso que datem o destino em suas mãos. Por outro lado fracassado e derrotado, pois possui uma angústia centrada num vazio e morte. A condição de ambos, homem ou mulher, não é mais transparente. A mulher saindo das funções familiares faz nascer uma depressão, pois sua saída a faz perceber que em seu lugar ficou um buraco. Essa angústia no filme é intensamente representada pela mãe de Richard que o abandona na infância, aliás, abandonou a família. Somos e não somos Laura Brown, principalmente quando os filhos são deixados antes de completarem cinco anos. Hoje a maioria das mulheres se experimenta como Laura, pois têm consciência de um abandono – o abandono da função da rainha do lar – fica um gosto amargo não melancolizado. Por outro lado, a mulher que permanece em casa passa a possuir uma angústia de gata borralheira, presa as funções domésticas. Ainda que ela fique em casa, experimenta uma desqualificação social – não foi capaz de buscar outros interesses. Não deu conta de mais nada e fica ameaçada com o crescimento dos filhos e a insatisfação do marido. E a mulher que por necessidades intelectuais, financeiras, psíquicas ou pessoais se lança no mercado de trabalho, deixa atrás de si uma pergunta – Quem é que vai se encarregar dos cuidados primários das crianças, dos doentes e dos idosos?

Fica um buraco – que não é angústia existencial, mas a gravidade desse buraco é pela mudança dos posicionamentos masculino e feminino. O buraco pesa nas costas da mulher enquanto culpa, condenação e busca de soluções. O homem ficou também desterritorizado. Ás vezes ele não quer mais ser o tradicional provedor, quer também espaço para viver e cuidar de outros interesses. E aí ele sofre das mesmas culpas e condenações que a mulher contemporânea sofre. E dos mesmos enganos.

Lembro-me de um caso clinico supervisionado pelo Dr. Antonino Ferro – um analista italiano que esteve algumas vezes no Brasil. Há algumas falas dele que acrescentam muito para mim a respeito da alma masculina. Ás vezes o trabalho psíquico de uma pessoa é tentar parar o tempo, por não saber lidar com a vida. Um filme de Bergman – Morangos Silvestres, inicia com a cena do funeral de um relógio sem os ponteiros. Às vezes a tentativa de parar o tempo aparece na vida de pessoas. Parar o tempo expressa-se nas pessoas que paralisam o próprio fluxo e dinamismo daquilo que elas são na essência. Param de crescer e tornam-se repetitivas, sem brilho. Ou se entopem de trabalho e compromissos para ficar muito ocupado – muito ocupado de evitar de pensar, caso contrário cairiam num profundo abismo de desespero. Às vezes as pessoas falam que gostariam de deter o tempo, a vida e a própria idade. Existe um drama que não pode ser enfrentado que é o do tempo que passa, das coisas que acabam e das experiências que não são aprendidas. Na crise da meia – idade, a passagem do tempo para algumas pessoas torna-se tão dramática, que casamentos são desfeitos ou romances porque o parceiro envelhece. E como no jogo de espelhos – a pessoa desfaz o laço, para magicamente não ver a si mesma envelhecendo também. Somente a capacidade criativa pode ajudar elaborar a superar essa crise. O drama é sentir-se tão só e ao mesmo tempo não poder usufruir o que está à disposição. A solução é pensar em parar o tempo, envolver-se com pessoas jovens, várias – em vez de transformar a angústia em algo criativo. Muito foi escrito, se falado e filmado sobre o drama de Don Juan, que seduzindo as mulheres pensava que existia.

Afinal qual é o sentido de tudo?

Fazer festas, comer pêras, ou enfrentar fantasmas e ampliar a criatividade e subjetividade de cada um? Como é que se consegue o direito de um espaço único e exclusivo? E que, se não for muito pedir também esse espaço que contenha sabedoria.

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