Central do Brasil

Começa na estação de ferro Central do Brasil, e ela se estabelece como um núcleo central, a partir do qual irradiam as estórias, em diferentes níveis.

No nível individual, com os dois personagens centrais, empreendendo uma profunda viagem ao centro deles mesmos, através da descoberta do Outro. E é esse o nível que pretendo olhar de perto aqui com vocês.

“É um filme sobre a necessidade de vermos o outro e descobrimos o afeto, capaz de mudar a nossa relação com a vida.”

De um ponto de vista psicanalítico, poderíamos intitular o filme de “Viagem em busca da figura paterna e da restauração do casal parental “. Esta é saga do garoto, numa idade em que a figura masculina é fundamental para a constituição da identidade e da resolução do problema edipiano.

Sendo a busca fundamental de Josué, ela atravessa também a viagem interna de Dora. Mas a viagem de Dora tem outros rumos e características próprias. Compreende a recuperação interna da figura da mãe, perdida no passado, pois morreu quando ela era criança, da idade de Josué. A restauração da figura do pai, que tinha ficado cindida de seus aspectos bons. O pai vivido internamente durante a maior parte do filme, foi o pai bêbado, autoritário em casa e palhaço na rua, ausente, volúvel, prefere o taxi ao ônibus, um pai que nunca a olhou, pois nem a reconhece quando a encontra na rua e só a percebe como um possível objeto sexual. Aquele pai que a deixou menina apitar o trem durante toda a viagem, que dava espaço para ela criança, sendo continente para sua necessidade lúdica, só é recuperado no fim do filme, junto com a sua saudade. Quando pode pela primeira vez escrever a sua carta, e não mais a dos outros. Uma carta para Josué, que intermediou esse reencontro. A viagem de Dora passa ainda pela aquisição da feminilidade, todos aspectos necessários para o estabelecimento de vínculos amorosos.

É uma viagem interna ao mais profundo recôndito de todo ser humano e que trata de um assunto central não só do Brasil, mas da estruturação de toda pessoa humana, ou seja, a busca da identidade e a resolução do problema edipiano. Nossa identidade não fica nunca pronta. Estamos sempre nos construindo e nos desconstruindo, enfim nos constituindo. Mas é necessário um terreno firme para suportar esse movimentos posteriores, que em grande parte seria a introjeção de uma mãe boa, e a resolução do problema edipiano.

Evidente que paga um preço alto por isso, a solidão, decorrência direta da incapacidade de olhar para o outro e de se relacionar com ele. Tem uma postura agressiva e fálica, nas mesquinhas e apequenadas relações emocionais que chega a estabelecer.

Irene é um contraponto de Dora, mais feminino, mais doce, que olha nos olhos, tem um contato próximo, estabelece facilmente vínculo com o menino, mas que também “ficou sem marido”, tampouco se completou como mulher. Não teve filhos, mas confessa abertamente sua incompletude e busca saná-la, procura, e por isso mesmo tem muito mais chance de “chegar lá”. Tem prazer em cuidar de si e do menino. Verbalmente diz que não quer participar, mas na ação observamos um sorriso de prazer no arbítrio, participa da rasga de cartas, mas busca respeitar o desejo das pessoas, considerando-as de uma forma menos indiferente que Dora.

Ela coloca limites para Dora. Quando desconfia que a amiga vendeu Josué, a televisão mostra o programa “Topa tudo por dinheiro” e ela diz firme: Dora, tudo tem um limite. Também a incentiva a ser generosa: Eu sabia que você era um bom soldado, disfarçando com Pedrão dentro da casa.

É na relação com Josué, que Dora restaura seus objetos internos bons e introjeta novos e desabrocha para a vida como ser humano, podendo perceber o outro e aproximar-se dele.

Outro aspecto fundamental dessa relação terapêutica, é que em muitos anos, ela não tinha se sentido objeto de desejo do outro, e Josué investe seu desejo em Dora, ele a olha e a percebe como ser humano amorável e como mulher. Como um ser especial.

Josué introduz o cuidado na vida de Dora. Tesouro introjetado como herança da mãe. Uma mãe que a seu modo foi suficientemente boa, ajudou-o a se respeitar e se perceber como um ser amorável.

Não deixa de ser uma criança com dificuldades, que na sua impotência, busca defesas onipotentes. Mas é uma criança bem constituída, com objetos internos bons e consistentes que o ajudam a lidar com suas angustias no desamparo e na sua busca da figura paterna idealizada. Tem uma mãe interna solidamente constituída que o acompanha e lhe possibilita ser moralmente íntegro, não se deixando comprar nem seduzir.

No desamparo total deprime-se, (a primeira noite que passa sozinho na estação) mas reage, não se deixa abater, busca consolo na imagem da virgem cuidando de seu bebê. É um misto encantador de arrogância mas também de dignidade que tem um cunho defensivo, certo, mas acrescido de um viés cultural.

Defende-se da impotência com a onipotência, as duas faces da mesma moeda, a de nossas falsas potências.

Com a mesma facilidade que estabelece um vínculo aberto e amoroso com Irene, nega com veemência o vínculo sem cuidado de Dora, rejeita-a e a agride mas ao mesmo tempo se cola a ela talvez por ser alguém que conheceu sua mãe, que o liga ao que sobrou dela. Instinto de vida, de sobrevivência?

Quando Dora se arrepende e arranca-o do apartamento, rejeita com ódio o cuidado de quem o abandonou. Mais um sinal da intensidade de seus vínculos. Ele é sempre intenso, não conhece a indiferença.

Quando Dora diz que ele é um castigo, no meio dos romeiros, ele foge, não aceita ser humilhado, ser desprezado, não ser cuidado. Quando ela desmaia de dor e desespero cheia de remorso e culpa, vendo-se envolvida pela intensidade da fé e das emoções daquele povo que ela por tanto tempo desconectou dos seus e tratou com ligeireza.

Restauração da figura parental, é um fio condutor da busca de Josué. De início Dora faz de tudo para separar essas figuras, começando pela carta que não envia, depois dizendo-lhe que o pai mora em outro planeta, que ele nunca vai chegar lá. Mas ele resiste e une os dois até no nome, é Josué de Paiva Fontanelle, Paiva de mãe e Fontanelle de pai, os dois estão juntos aqui em mim. No fim do filme Dora percebe a importância disto e debaixo da foto do casal reunido dos filhos mais velhos, coloca lado a lado a carta que a mãe mandou para o pai e a que o pai mandou para a mãe, ambos anunciando que queriam se reencontrar.

Outro aspecto muito interessante do filme, foi o do espaço do brinquedo. Ele é fundamental para a criança e é através dele que ela desenvolve suas potencialidades e sua criatividade, além das habilidades necessárias para a sobrevivência na vida adulta. Ele vivia agarrado ao pião que o pai fez para ele “com as próprias mãos”. Mas não existia espaço para brincar na estação, foi tentando recuperar seu pião que ele perdeu a mãe. Quando une Dora e o caminhoneiro, brinca de chofer de caminhão no colo deste último. Quando chega na casa do irmão, a primeira coisa que este faz é brincar com ele com o jogo de palavras, o outro faz junto com ele um pião, deixando-o brincar de marcineiro e depois vemos os três irmãos brincando de bola na rua.

Porque ela abandona ele? Não é abandono, é prova de amor. Quem ama cuida e cuidar é buscar o que é melhor para o outro e não para si. Ele estava muito melhor com seus irmãos, na sua família, no seu meio, dentro de sua cultura.

Quem ama não prende nem controla seu objeto de amor. Deixa-o livre para ser feliz. A sua maneira, seguindo seu caminho, vivendo a sua vida. Mães ou pais controladores e possessivos ou que buscam um duplo, são os mais Fanáticos. Destroem os filhos. Ou os maridos, ou as esposas. Ninguém desabrocha preso a um amor que abafa, que limita o outro para tê-lo debaixo de suas asas.

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